Por Luis Fabiano e Dhomini Santos
A cerca de 65 quilômetros de Porto Seguro, separado da sede do município por uma frequentemente esburacada estrada de terra e por uma travessia de barco a remo, o vilarejo de Caraíva é considerado um verdadeiro paraíso pelos milhares de turistas que o visitam todos os anos. Localizado ao lado da Terra Indígena Barra Velha do Monte Pascoal, está situado dentro do perímetro do Parque Nacional do Monte Paschoal, além de integrar a Reserva Extrativista de Corumbau e a Área de Proteção Ambiental (APA) Caraíva Trancoso. Como se não bastasse tudo isso, Caraíva também integra a área tombada como patrimônio mundial pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
Com tamanha notoriedade, Caraíva deveria contar com várias camadas de proteção por parte do poder público, dada a sua importância para a conservação do meio ambiente na região.
O que se vê, contudo, é um cenário desafiador frente a múltiplas ameaças, que têm se intensificado conforme o povoado atrai mais e mais atenção dos turistas. Crescente superlotação, especulação imobiliária e construções irregulares têm trazido impactos ambientais que comprometem o ecossistema local, na avaliação das lideranças locais.
Um caso recente expôs o grau das ameaças a Caraíva. Em setembro de 2024, um deck reformado de forma irregular por um restaurante, às margens do rio Caraíva, foi demolido pela fiscalização ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
Segundo Túlio Braz, morador de Caraíva e estudante de Ciências Biológicas, o deck havia sido construído havia muitos anos e tinha um propósito claro: ser de uso público, conforme o alvará de construção emitido na época. “O alvará não garante a propriedade sobre o convés. Ele foi autorizado exclusivamente para atração e desembarque de mercadorias, está tudo no documento”, explica.
No entanto, conta ele, o problema começou quando o espaço passou a ser utilizado de forma privada, descaracterizando o seu objetivo original e, consequentemente, tornando a sua utilização ilegal. Túlio também aponta outra irregularidade: “O projeto autorizado era diferente do que foi construído. Ele apresentou um plano, mas fez outro. Além disso, ocupou uma área muito maior do que deveria. A documentação mostra que o espaço autorizado era de 48m², mas a última atualização enviada à prefeitura indicava mais de 100m²”.

Para Túlio, a falta de atenção constante do poder público contribuiu para que situações como essa se perpetuassem. “O que falta mesmo aqui é fiscalização”, conclui.
O crescimento do turismo em Caraíva tem gerado transformações significativas no vilarejo, trazendo desenvolvimento econômico, mas também desafios que afetam diretamente a comunidade local. A expansão desordenada, a especulação imobiliária e a falta de fiscalização são algumas das preocupações levantadas por moradores e especialistas.
“Parece que ninguém aprende. Isso aconteceu com Trancoso, aconteceu com Arraial D’ajuda, aconteceu com Porto Seguro”, lamenta o advogado e ativista ambiental Vinícius Parracho. “A gente precisa muito ter essa consciência de que o turismo é bom, traz um desenvolvimento econômico, mas, se você não tiver uma atuação firme, você perde o andar da carruagem e isso faz com que toda a sua população seja submetida ao subemprego, à gentrificação, aumento das periferias e, consequentemente, perda de qualidade de vida.”
Os impasses em Caraíva envolvem não apenas questões ambientais, mas também a preservação do patrimônio cultural e arquitetônico da região. A expansão desordenada e as construções irregulares, como os decks, despertaram a atenção de diferentes órgãos responsáveis pela fiscalização e proteção do local. Nesse cenário, o diálogo entre as instituições, como o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBIO) e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), torna-se essencial para buscar soluções que equilibrem o turismo e a preservação do vilarejo.
A situação jurídica de um segundo deck em Caraíva está no centro de um impasse legal que envolve diversos órgãos ambientais e urbanos. Desde 2004, o deck foi multado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), mas ainda existem recursos pendentes, o que faz com que o caso esteja em fase de agravo, aguardando uma decisão final sobre a demolição.
Em 2020, o deck foi embargado, mas o proprietário, Airton Vargas, continuou utilizando o espaço e realizou reformas sem a devida autorização, configurando um descumprimento do embargo. Como resultado, novas autuações foram feitas, e entre as sanções previstas está a possibilidade de demolição.
Em 2021, o ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles visitou Caraíva e se hospedou na casa do empresário responsável pelo deck, trazendo à tona debates sobre a ocupação e o uso do território.

O deck construído pela empresa privada Lunabel Empreendimentos Imobiliários, do empresário Airton Vargas, enfrenta um processo judicial que visa à sua demolição, mas a decisão final ainda está pendente, com recursos em andamento.
O IPHAN também está envolvido, principalmente em relação aos cálculos em torno da construção. Já o ICMBio acompanha a situação para definir os próximos passos.
“Estamos buscando uma articulação com o IPHAN para discutir a questão do visual e da volumetria. O IPHAN tem responsabilidade sobre isso, e estamos tentando alinhar nossas ações para encontrar uma solução que respeite tanto o patrimônio ambiental quanto o cultural da região”, explica Ronaldo Oliveira, chefe da unidade do ICMBIO que integra a gestão da RESEX Corumbau.
Mudanças na comunidade
Na avaliação das lideranças comunitárias, as construções irregulares prejudicam os nativos e só beneficiam pessoas de fora, que se tornaram proprietárias de pousadas, restaurantes e outros empreendimentos turísticos no local. “Os empresários, chega aí uma empresa lá da Espanha, botou deck e tal, querendo fazer festa e tudo mais… Eles acabaram tirando o deck, porque uma coisa que vai o quê? Vai favorecer a quem? Os empresários, entendeu? “, critica o pescador Raimundo José Bomfim Cardoso, o “Zé Marreco”, integrante do conselho deliberativo da Resex Corumbau.
Além dos decks em Caraíva, outras infrações em edificações estão sendo monitoradas na região da Resex Corumbau, especialmente em Ponta do Corumbau e Cumuruxatiba. Tais construções desconsideram as regras que vedam obras em Áreas de Preservação Permanente (APP), prejudicando diretamente o ecossistema da região e a flora nativa.
De acordo com o ICMBio, as ações fiscalizatórias têm um caráter educativo e preventivo, alertando sobre as implicações de interferir na restinga, que é resguardada pela Lei 11.428/06. Conforme a legislação atual, como o decreto 6514/08 e a Lei 11.428/06, as áreas de preservação permanente (APP) e restinga são inegociáveis em termos de regularização. É imprescindível evitar qualquer tipo de construção nessas regiões, o que reforça a importância de um planejamento sustentável para a região.
Vinícius Parracho ressalta ainda a importância de políticas públicas que incentivem a sustentabilidade em Caraíva. Ele menciona a aprovação do IPTU Verde na Câmara Municipal em 2021, uma iniciativa que prevê descontos para moradores que adotam práticas sustentáveis, como a preservação de árvores de grande porte, o reaproveitamento da água da chuva, a instalação de paineis solares e o uso de ecofossas.
No entanto, segundo Parracho, apesar de a lei ter sido aprovada, ela nunca foi implementada pelo prefeito. “Ele não acha que é importante, mesmo com a lei aprovada”, afirmou. Para o ativista, iniciativas como essa poderiam contribuir para um desenvolvimento mais equilibrado, respeitando o meio ambiente e promovendo um diálogo com os povos tradicionais e a comunidade local.
A Ansuba procurou a prefeitura para perguntar por que o IPTU verde ainda não foi posto em operação, mas não obteve resposta até o fechamento desta reportagem. A agência também buscou contato com os responsáveis pelas obras dos decks e igualmente não obteve retorno até o momento.
Como apontado pelos entrevistados, a situação exige a colaboração de diferentes setores, incluindo órgãos públicos, nativos, moradores antigos e visitantes. A ideia é adotar medidas que protejam a integridade de Caraíva, reconhecida como um destino turístico de grande valor natural e cultural. “O que é bom pra mim tem que ser bom pra mim e tem que ser bom pros outros”, resume Zé Marreco.
Esta reportagem contou com apoio do Pulitzer Center, por meio do Fundo Semear 2024.