Canavieiras: comunidade de pescadores sofre com falta de acesso à escola

Necessidade de deslocar-se até a cidade para estudar impacta crianças e adolescentes da Reserva Extrativista
22 de novembro de 2025
Canavieiras: comunidade de pescadores sofre com falta de acesso a escola
Para famílias de Campinhos, a travessia no catamarã improvisado é parte da rotina escolar — Crédito: Lilian Santana

Por Aline Valente e Rafael Silva 

Quase todos os dias, as crianças da comunidade pesqueira e marisqueira de Campinhos, na Reserva Extrativista de Canavieiras, passam horas brincando nas praias e nas águas dos canais que cortam a região. Seus olhos curiosos observam diariamente os mais velhos retornando da pesca em seus barcos, em um cenário que reflete um modo de vida que há gerações se mantém em profunda conexão com a natureza. Tradicionalmente, ao lado dos mais velhos, as crianças da comunidade não só aprendem sobre a sua história, sobre a pesca e a proteger o território, mas também a lutar por uma vida digna na sua comunidade. 

Hoje, contudo, para defender seu modo de vida tradicional, as crianças sabem que, além de aprender o modo de vida dos mais velhos, precisam também estudar na escola. O direito de todos à escola é assegurado pela Constituição de 1988. Apesar disso, tal realidade ainda não alcança plenamente crianças de comunidades pesqueiras como Campinhos. “Eu não tive a chance de estudar, mas quero que os jovens da nossa comunidade possam ir para a universidade”, diz João Santana, líder comunitário de Campinhos, conhecido como João Barba. Seu rosto, marcado pela luta incessante ao longo dos anos, carrega a sensibilidade de quem vivenciou o peso das inúmeras ameaças enfrentadas, além de revelar uma memória coletiva imersa em desafios. Para João Barba, a preservação ambiental da região passa pela luta pela educação.

Estudantes da Resex de Canavieiras enfrentam chuvas, atrasos e longos deslocamentos para manter a frequência escolar — Crédito: Lilian Santana

O pescador conta que o avô dele foi um dos primeiros a estabelecer raízes naquele território que, hoje, é Campinhos:

“Aqui é uma área remanescente de escravos”. Segundo ele, a comunidade busca atualmente o reconhecimento de seu território como quilombo.

“A terra e o território são parte da gente, e por isso a gente tem que se orgulhar”

Segundo relatos das lideranças, as especificidades culturais e tradicionais das populações que habitam a Resex Canavieiras têm sido ignoradas no ambiente escolar, contribuindo para um processo de marginalização e desvalorização de suas identidades. “A gente tem um processo educacional nas comunidades que ele é excludente, ele não fala da história do território”, critica Lilian Santana, líder da Rede Mulheres da Comunidade de Campinhos. 

“[Nas escolas] não falam por que a gente tem uma unidade de conservação, que a gente chama de Resex, não falam da importância da pesca artesanal, não falam da importância do pescador e da pescadora na cadeia produtiva, na renda e na proteção do território”, continua ela. “Não fala sobre educação ambiental. Nem se faz o histórico da comunidade, por que você vive aqui, por que você está nessa comunidade? Por que nós somos pescadores? Por que nós trabalhamos com a agricultura familiar? Porque a terra e o território são parte da gente e por isso a gente tem que se orgulhar.”

Em busca de melhorar a qualidade do ensino na escola municipal existente no Campinho, Lilian conta que as lideranças já buscam há anos o diálogo com a prefeitura, em vão:

“Aqui não tem diálogo com o município, e todo diálogo que a gente busca com o município, nós somos sempre taxados como encrenqueiros. Nós chamamos eles, fazemos reuniões, colocamos em ata, levamos as ideias, as sugestões e as soluções. E eles falam, ‘nós vamos dar retorno’, e isso tem um ano, dois anos, três anos e ninguém dá retorno, só dizem que seguem uma regra que é aplicada pelo MEC [Ministério da Educação] e não podem mudar”. 

Uma das saídas alternativas que se vem buscando, segundo ela, é buscar o apoio estadual: “Eu tenho esperança de que a gente tenha uma extensão de um colégio estadual aqui na comunidade. As comunidades contribuem com a cultura, com a história e com a tradição do município. [É preciso] que a educação daqui seja uma educação adequada à nossa realidade, essa é minha esperança”, afirma. 

Antônio Bispo dos Santos Junior, Agente Pastoral do Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP) na região do Baixo Sul da Bahia, aponta que essa realidade é geral no país entre as comunidades de pescadores: “Infelizmente, no Brasil todo, temos uma educação voltada principalmente para que os jovens sejam empregados de alguém a vida toda. É preciso uma educação que consiga emancipar, consiga ampliar, uma educação que faça pensar”. 

“O poder público considera que essas comunidades são as responsáveis por fornecer mão de obra barata”, continua ele.

“Grande parte dessas comunidades pesqueiras estão localizadas em locais turísticos, e a escola vai formando esses jovens para um emprego mal remunerado e, para isso, não precisa de muita qualificação. A escola, na verdade, acaba reforçando a desesperança.”

A pedagoga Eliana Póvoas destaca que há uma luta histórica das comunidades quilombolas e indígenas para que suas culturas sejam incluídas nos currículos escolares. Ela explica que, de modo geral, as escolas que não estão no meio urbana são precarizadas:

“No país há uma divisão que acaba por desqualificar o campo, entre urbano e rural. Que acaba sempre achando que a educação do campo, que a educação camponesa como aquela que não requer as mesmas qualificações do que a urbana”.

“Como exemplo, salas multisseriadas, professores em disfunção das suas formações. Acontece nas escolas urbanas também, de um professor de geografia trabalhar com biologia, mas, nas escolas camponesas, nas escolas do campo, isso é regra”, diz Póvoas, que é coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Ensino e Relações-Étnico-Raciais (PPGER) na Universidade Federal do Sul da Bahia.

Atualmente, cerca de 52 crianças da RESEX de Canavieiras enfrentam o desafio diário de atravessar o rio de catamarã para chegar à escola do município. O barco disponibilizado pela Prefeitura Municipal de Canavieiras para o transporte das crianças é um catamarã, uma embarcação para o turismo e inapropriada para o transporte escolar. 

O professor da UFSB, Paulo Dimas, coordenador do grupo de pesquisa Comunidades e(m) Autonomia no Sul da Bahia, diz que fazem falta políticas nacionais para educação em comunidades tradicionais como as de pescadores e marisqueiras. “Além da comunidade indígena, que conquistou a possibilidade de uma educação diferenciada, nenhuma outra comunidade tradicional conseguiu também um plano nacional”, comenta ele. “Quase toda a educação nacional, à exceção de algumas comunidades indígenas, ela é dada apenas do ponto de vista do Estado Nacional, da Nação única Brasil, o que é para mim um erro gravíssimo. As estruturas do Estado, do MEC, das Secretarias de Educação estaduais e municipais são todas baseadas na estrutura de colonização, na estrutura de dominação, de transformação e na apropriação da cultura desses povos”.

Pesquisadores e lideranças regionais defendem educação diferenciada para comunidades tradicionais — Crédito: Erivaldo Santana

Kátia Bacelar, moradora de Campinhos, é mãe de dois estudantes e sonha com um futuro melhor para os filhos. Com uma expressão de angústia, ela conta das dificuldades que as crianças enfrentam diariamente para ir à escola: atrasos frequentes do barco que leva à escola na cidade, além de obstáculos adicionais para crianças com necessidades especiais: “Minha filha é especial. Principalmente para ela é pior ainda porque tem as limitações dela também, né? Aí os outros têm que tá pegando no colo para colocar no barco que é muito alto para subir. Eu só tenho paz mesmo quando vejo que a barca chega. Se tivesse o colégio aqui como eles prometem, mas não fazem, seria mais fácil, né?”

“O pensamento da minha filha é terminar o estudo e cursar uma faculdade. O sonho dela é esse e o meu também. Ela gosta muito de estudar, ela não gosta de perder a aula nem no tempo de chuva. Quantas vezes ela chegou aqui com o material molhado, roupa molhada, é sofrimento”, completa Kátia.

Crédito: Erivaldo Santana

Dificuldades com o município

As Reservas Extrativistas (Lei 9.985/2000) visam proteger a cultura e os modos de vida das comunidades tradicionais, promovendo a conservação dos recursos naturais e o desenvolvimento sustentável.  No sul do estado da Bahia, destacam-se três Reservas Extrativistas do bioma marinho costeiro: a Reserva Extrativista Corumbau, a Reserva Extrativista de Cassurubá e a Reserva Extrativista de Canavieiras, criada em 2006. 

Segundo o Censo Demográfico de 2022, realizado pelo IBGE, a Resex de Canavieiras conta com 232 crianças e jovens em idade escolar (entre 5 e 19 anos). O levantamento também revela que há 12 moradores (entre 15 e 29 anos), 108 (entre 30 e 59 anos) e 65 (com 60 anos ou mais) que não sabem ler nem escrever.

“Seria ideal que essas crianças e jovens tivessem uma educação diferenciada, seria interessante que inserisse na educação a questão ecológica, questão da preservação dos animais marinhos, né?”, questiona Antônio Bispo dos Santos Junior, agente Pastoral do Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP) na região do Baixo Sul. 

“As comunidades têm que ser protagonistas. Ter um jovem da comunidade, formado em engenheira de alimentos, engenharia de pesca, por exemplo. Tendo uma estrutura fortalecida de turismo de base comunitária, o jovem não ia querer sair para trabalhar em outro lugar. São os jovens que vão contar a história da comunidade, vão fortalecer a cultura deles. Tem muito preconceito, racismo, as pessoas acham que pesca é um trabalho menor”, completa ele.

Katilane Santana Bezerra, 19 anos, filha de Kátia Bacelar, é uma das jovens que estuda na escola do município. Ela sonha com uma realidade diferente para os jovens da Resex: “Seria muito bom se a gente estudasse aqui na nossa comunidade. Íamos prestar mais atenção nas aulas e não ia e não íamos sentir tanto cansaço como sentimos”. 

“O que eu sonho muito para minha comunidade é uma escola que fosse até o terceiro ano do ensino médio com todos os professores, um posto de saúde, um local de cursos para jovens e adultos, uma escola para pessoas adultas que não tiveram oportunidade de estudar e não tiveram alfabetização. Ajudaria muito os adultos da comunidade que não aprenderam a ler e escrever e também aqueles que não conseguiram terminar os estudos. Sou uma menina muito sonhadora, e um dos meus sonhos é terminar os meus estudos e fazer uma faculdade”, completa Katilane.

Buscamos contato com a Secretaria de Educação de Canavieiras para discutir a possibilidade de uma embarcação adequada e segura que permita o acesso das crianças das comunidades da Resex à escola do município, bem como para perguntar sobre o planejamento de construção de escolas nas próprias comunidades. Até o fechamento desta reportagem, não obtivemos retorno.

Esta reportagem teve apoio do Pulitzer Center, por meio do Fundo Semear 2024.


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